Nesta sexta-feira (19), é celebrado o Dia dos Povos Indígenas, e embora o direito dos povos indígenas à educação escolar seja garantido pela Constituição Federal de 1988, ainda hoje existe uma diversidade de desafios para assegurá-lo na prática. Um dos problemas que preocupam é a falta de valorização de professores indígenas.
De acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1996, a educação escolar indígena deve ser bilíngue e intercultural para que haja a recuperação e a valorização da memória histórica dos povos indígenas, de suas línguas e ciências, e a reafirmação das identidades étnicas, além do acesso a informações e conhecimentos não indígenas.
“Os povos indígenas são, de maneira geral, educadores dentro de sua comunidade. Mas, quando olhamos para o aspecto da educação escolar, existe um abismo nas políticas públicas que os deixa à margem do cenário educacional do país”, afirma Helenice Ricardo, professora do Departamento de Educação Escolar Indígena da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
O que é a educação escolar indígena
A educação escolar indígena nada mais é do que a institucionalização dos saberes sociais e coletivos dos povos originários somada a uma versão adaptada da educação formal não indígena.
“Não se trata de tentar eurocentrizar a educação de estudantes indígenas, levando-os para as escolas, mas de incluí-los e compartilhar com eles saberes da sociedade não indígena, ainda respeitando a individualidade de cada povo e garantindo a sobrevivência de seu modo de vida”, explica Helenice Ricardo.
Para Gersem Baniwa, doutor em antropologia pela Universidade de Brasília (UnB) e membro do povo Baniwa, do Amazonas, garantir a educação escolar indígena nos moldes previstos na Constituição e na LDB é fundamental para dar aos povos indígenas protagonismo em suas formações.
“Existem escolas em territórios indígenas desde o século 16. O que precisamos é que essas escolas tenham professores indígenas, gestores indígenas, que consigam formar e liderar os estudantes indígenas”, Gersem Baniwa.
Segundo o especialista, que dá aulas no Departamento de Antropologia da UnB, permitir aos jovens indígenas a oportunidade de serem educados em suas línguas maternas, por professores integrantes de povos indígenas — enquanto aprendem sobre temas da realidade indígena, mas também sobre assuntos externos a eles — pode ajudá-los a compreender diferentes realidades a partir das próprias.
Formação de professores indígenas
Um ponto importante para a garantia da aplicação da educação escolar indígena é a formação de professores indígenas com licenciatura, pedagogia ou magistério, capacitados para ensinar estudantes de educação básica.
Hoje, já existem licenciaturas interculturais que passaram a ser ofertadas graças à pressão de movimentos dos povos originários. Esses movimentos acompanharam o aumento da escolarização indígena no século 20 e exigiram o direito a uma educação especializada, ministrada por seus pares.
A ideia desses cursos é que os estudantes indígenas concluam o ensino médio em suas próprias comunidades e tenham a oportunidade de virarem professores licenciados para ensinar as próximas turmas de jovens indígenas.
Cursos como esses são financiados por um fundo específico do Ministério da Educação, o Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas Indígenas (Prolind). Segundo o MEC, em 2023, o repasse de verbas para o programa foi de R$ 8,6 milhões.
Uma das licenciaturas que integran o Prolind é dada pelo Departamento de Educação Escolar Indígena da UFAM, que é ofertada desde 2008 e já formou 370 professores indígenas, segundo Helenice Ricardo.
“Começamos com uma demanda do Povo Mura e depois atendemos mais sete turmas. Passamos pelos Sateré-Mawé, Munduruku e, a partir de 2011, começamos a atender territórios etnoeducacionais com múltiplos povos”, Helenice Ricardo.
Em 2024, pela primeira vez, uma turma de licenciatura intercultural está se especializando diretamente da sede da UFAM, em Manaus. Antes, as formações aconteciam em pólos da universidade, no interior do estado.
“Essa é uma conquista importante não só para os indígenas em formação, que estão ocupando um espaço que lhes pertence, mas também para os demais estudantes não indígenas, que vão aprender de maneira prática que quanto mais múltiplo e diverso é o ambiente universitário, mais saudável ele é”, avalia Helenice.
Na UFAM, a licenciatura para professores indígenas dura 4 anos e meio e começa com uma formação geral básica. No terceiro ano do curso, a turma é dividida em três áreas (linguagens, ciências da natureza e ciências humanas e sociais), e volta a ser unificada no final da formação.
Segundo Helenice, que integra o departamento responsável pelo curso, essa estrutura está longe do ideal de uma formação bem direcionada, mas explica que, muitas das vezes, um daqueles professores pode ser o único a lecionar o ensino médio em sua aldeia, então, precisa saber um pouco sobre cada área.
Vácuos da educação indígena
E é isso mesmo que acontece. De acordo com levantamento da ONG Todos Pela Educação obtido com exclusividade pelo g1, em 2023, cada escola indígena de educação infantil tinha menos de dois professores.
O levantamento revela que houve aumento no número de escolas, mas queda na média de professores por instituição em comparação a 2021.
- 2021: 2.035 escolas indígenas de educação infantil, e 4.301 professores atuando nessas instituições.
- 2023: 2.257 escolas, e 3.869 professores atuantes.
Essas mesmas escolas também sofriam com falta de fornecimento de energia elétrica e de material pedagógico infantil e indígena, além de problemas estruturais em 2023.
“Imagina sair de sua comunidade, de sua região, para estudar e se especializar, e voltar para trabalhar em um local despreparado, impróprio para suprir as necessidades. São meses fora de casa para estudar, recebendo nenhum ou quase nenhum auxílio financeiro, apenas para testemunhar o descaso das redes de ensino”, Gersem Baniwa.
Outros problemas enfrentados pelos professores indígenas são a desvalorização salarial e profissional, e o cenário de incerteza no trabalho, segundo o antropólogo.
“Muitos professores que trabalham em escolas indígenas rurais têm contratos temporários, não tem vínculo empregatício com as redes de ensino e acabam trabalhando por baixos salários, correndo o risco de serem demitidos na primeira oportunidade”, explica.
Segundo o especialista, diante deste cenário, muitos profissionais formados optam por não trabalhar como professores ou escolhem fazer concursos em zonas urbanas em busca de estabilidade profissional.
‘Temos que descolonizar a educação’
Gersem Baniwa acredita que garantir a valorização dos professores indígenas é um passo importante para que a educação escolar indígena aconteça da maneira descrita em lei. E ele defende que nem só os povos originários se beneficiariam disso.
“Quem foi educado nos moldes da educação tradicional tem dificuldade de entender que educação não é uma experiência única, composta dos mesmos elementos. Mas é algo fluido que muda e precisa mudar a partir da realidade de cada um. E isso que é a educação indígena, uma forma de educar adequada aos povos indígenas, mas tão válida e correta quando o ensino formal das cidades”, diz.
Helenice Ricardo concorda que a partir do exemplo da educação indígena, as escolas brasileiras não indígenas podem aprender muito.
“Podemos aproveitar essa experiência para criar epistemologias e metodologias para nossa educação como um todo, aceitando e permitindo as influências do povo brasileiro, dos afrodescendentes e dos indígenas, oferecendo, assim, uma educação decolonial, diferente do que fazemos há séculos”, Helenice Ricardo.
Para ela, essa é a única forma de expandir a educação de uma maneira inclusiva e mais parecida com a diversidade brasileira.